A IMPLICAÇÃO DOS FATORES SOCIAIS NA CICATRIZAÇÃO DE ÚLCERA VENOSA COMPLEXA:
UM ESTUDO DE CASO
Resumo
Introdução: As úlceras venosas (UV) são lesões de pele localizadas geralmente no terço inferior dos membros inferiores (MMII), na região medial, com caráter de evolução lenta. A doença é ocasionada pela insuficiência venosa crônica (IVC). 1 As UV’s complexas, possuem o índice- tornozelo braquial (ITB) de 0,8 - 1,3 uma área maior ou igual a 100 ? e com um tempo igual ou superior a 6 meses, além de outros fatores de risco 1 Os fatores socioeconômicos podem comprometer a liberdade de escolha, diminuindo a probabilidade de acesso à saúde, alimentos saudáveis, moradia adequada, e realização de atividades físicas. A situação econômica limitada e a presença da ferida, são elementos capazes de desequilibrar o controle financeiro e emocional, afetando não apenas o paciente, mas a todos familiares. 2 Objetivo: Relatar um caso de uma paciente com úlcera venosa complexa, de difícil cicatrização, dissertando sobre os fatores que interferem no processo cicatricial, com ênfase nos fatores socioeconômicos. Metodologia: Trata-se de um estudo observacional do tipo relato de caso, desenvolvido pelo Projeto de Extensão de Sistematização da Assistência de Enfermagem no Manejo de Lesões de Pele (SAELP), do curso de Enfermagem na Universidade Federal do Espírito Santo, no município de Vitória- ES Os atendimentos ocorreram do dia 30 de dezembro de 2019 até o dia 22 de fevereiro de 2022. O caso foi constituído por uma única paciente com uma UV. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFES (Parecer nº 6.114.786). Resultados e Discussão: N.F.F 83 anos, negra, aposentada, mãe de 6 filhos, residindo com filha, filho e neta. Todos sobreviviam com a renda da aposentadoria. Ela apresenta IVC em membro inferior direito na região distal superior ao maléolo externo há aproximadamente 45 anos. De acordo com registros encontrados no prontuário eletrônico da Unidade Básica de Saúde (UBS), o acompanhamento da paciente deu-se no início em 2012. Após 2 anos, os profissionais responsáveis suspeitaram que a ferida fosse de origem vasculogênica, porém não houve confirmação. Em 2016, a paciente apresentou um episódio de infestação por miíase, foi prescrito ivermectina e encaminhada para o médico vascular, entretanto a consulta não ocorreu. Em 2019, foi novamente encaminhada ao vascular, a equipe da UBS orientava a família sobre a realização do doppler, e assim, iniciar o tratamento para a lesão. Foi conversado sobre a higiene pessoal, devido a recorrentes episódio de miíase. Dezembro do mesmo ano, compareceu ao vascular, recebeu o diagnóstico de IVC com exclusão de Doença Arterial Periférica, sendo “liberado” o uso de terapia compressiva e/ou contensiva. No dia 30 de dezembro de 2019, ocorreu a primeira consulta de enfermagem realizada pelo projeto SAELP. A lesão em MID tinha comprimento de 18 cm x 14 cm de largura, edema visível em MID quando comparado ao MIE, com o diâmetro de 43 cm de panturrilha. Foram realizadas intervenções de enfermagem, dentre elas aplicação da bota de unna em técnica de oito, dando início a terapia contensiva. A partir disso, as consultas foram semanais. Em março de 2020 devido a pandemia da COVID-19, fez-se necessário modificar o atendimento, tornando-o domiciliar em que somente a professora comparecia. Nos meses iniciais, os serviços de saúde enfrentaram dificuldades na aquisição de produtos, entretanto, a bota de unna era liberada pela UBS e aplicada semanalmente. A quantidade de exsudato era desafiadora, diante das coberturas disponíveis, não serem capazes de gerenciar a umidade por 7 dias (prazo entre as trocas) e a troca insuficiente de curativo secundário pela família. Em dezembro, diante da estagnação na cicatrização, foi proposto o uso da atadura elástica compressiva. Tal produto não é padronizado pela PMV, sendo adquirido por meio de uma doação. Diante disso, optou-se como intervenção a alternância do uso da bota de unna com a atadura elástica, que tinha por objetivo diminuir o tempo de permanência da bota, a fim de que o gerenciamento da umidade fosse efetivado. Diante da dificuldade de adesão ao tratamento e cuidados prescritos, e a vulnerabilidade socioeconômica observada nas visitas domiciliares, foi necessário convidar a equipe multiprofissional da UBS para que realizassem o monitoramento dos cuidados prestados pelos familiares. Assim, houve retração de bordas. Em março de 2021 notou-se a ausência do cuidador durante as consultas. A idosa encontrava-se sozinha, com sinais de desnutrição, queixando-se de realizar o autocuidado, os cuidados com o domicílio e de dormir no sofá enquanto a filha e a neta dormiam em seu quarto. Diante do cenário dos conflitos familiares, e da dificuldade de adesão ao tratamento, foi agendado em maio de 2021, uma reunião com os filhos, a assistente social e a professora. Nesse encontro, a filha negou as queixas da mãe. Ademais, a assistente social orientou sobre a responsabilidade legal dos filhos de cuidarem da mãe. A família foi encaminhada novamente para o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) sendo solicitada uma avaliação do Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Após o ocorrido, foi possível observar melhora nas condições de higiene da casa, do cuidado familiar e melhora da ferida. Seguindo o plano de cuidado proposto e acompanhamento pelo CRAS, as lesões continuavam apresentando melhora no processo de cicatrização. Diante do quadro e das condutas mantidas, em fevereiro a UVC apresentou cicatrização completa. Foram feitas orientações sobre o uso contínuo de terapia compressiva, hidratação do membro e alimentação saudável. A idosa seguiu sob os cuidados da equipe multiprofissional da UBS. A avaliação e o diagnóstico de pacientes com lesões de UVC deve ser ampla, sendo realizada durante a consulta de enfermagem1,3. Ademais, os sinais e sintomas definidores da ferida, são essenciais para estabelecer o diagnóstico de UVC 1,3. A idosa conviveu por 45 anos com uma lesão que causava estigma e sem acesso à especialistas. Contudo na PMV há doppler para realização de ITB na UBS, e diante da clínica e da exclusão de doença arterial, seria possível o início da terapia compressiva. Mantendo-se o tratamento na ferida, sem tratar a causa. O consenso de 2015 “SIMPLIFYING VENOUS LEG ULCER MANAGEMENT” 2 afirma que terapia compressiva pode ser avaliada com bases em sinais clínicos e seu uso prescrito pelo enfermeiro. Sabe-se que a compressão imediata auxilia no manejo da hipertensão venosa e a redução do edema, que são a pilares na UVC 1. Contudo no Brasil, a Resolução COFEN n° 567/2018 4, limita a prescrição da terapia contensiva, sendo liberado mediante ao diagnóstico médico. Essa questão, torna-se problemática pela demora ao especialista, visto que o enfermeiro capacitado manejaria a clínica diminuindo o tempo da cicatrização1,3. Ao manejo de exsudato, a ferramenta TIMERS notabiliza que a produção excessiva, e a presença de umidade resulta em cicatrização interrompida e danos potenciais à pele circundante3. Conjuntamente, os produtos disponíveis para o tratamento são fatores importantes, pois uma cobertura de baixa tecnologia poderá ser incapaz de manejar corretamente a umidade em uma ferida submetida a terapia de compressão 1. O relato, evidencia a ausência de coberturas capazes de manejar corretamente o exsudato padronizadas pela PMV, e a inviabilidade de aquisição de coberturas tecnológicas, devido a vulnerabilidade social, sendo necessário um número maior de trocas de curativos secundários, para criar um ambiente equilibrado a cicatrização 3. Por diversas vezes, realizou-se orientações aos familiares, que dificultou o processo de cicatrização. No presente relato, nota-se o déficit do acesso à equipe multiprofissional que, quando disponível, é capaz de intervir de forma eficaz, diminuindo o cuidado centrado no enfermeiro. No que diz respeito a cicatrização da lesão, observa-se a influência de fatores familiares e socioeconômicos,1,3 evidenciados após a paciente conviver por 45 anos com a UVC, o que influenciou em sua higiene e condições de vida. O Estatuto do idoso discorre no Art.3 sobre a obrigatoriedade da família em assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar 5. Assim identifica-se que a continuidade do cuidado, só foi possível através da educação em saúde constante do cuidador, para que fosse compreendido a melhoras nas condições da casa e com a lesão. Conclusão : Após dois anos de tratamento com avanços e retrocessos, foi possível a cicatrização total de uma UVC que estava presente há 45 anos. Nesse sentido, o cuidado à pessoa com Úlcera Venosa Complexa tem por condição um sistema de saúde robusto, com atuação da equipe multiprofissional capaz de intervir nos fatores socioeconômicos e nos conflitos familiares. No que tange ao tratamento de feridas de difícil cicatrização, este estudo de caso revela que é necessário investimento no conhecimento técnico científico, na utilização da terapia compressiva /contensiva, para que ocorra o processo de cicatrização eficaz. É notório multidisciplinares, auxiliaram no tamanho e na quantidade de exsudato, na melhora da higiene, na autoestima, na qualidade de vida da paciente e na responsabilização dos familiares com os cuidados necessários a idosa. Entretanto, o presente estudo aponta a fragilidade no Sistema Único de Saúde, em implementar um plano terapêutico holístico que contemple e intervenha nos fatores psicossociais, econômicos e familiares para o tratamento eficaz de feridas de difícil cicatrização.