USO DE TERAPIA LARVAL NO CUIDADO AO PACIENTE DIABÉTICO COM FERIDA DE DIFÍCIL CICATRIZAÇÃO:
ESTUDO DE CASO
Resumo
INTRODUÇÃO Diabetes mellitus (DM) representa um significativo e crescente desafio de saúde global, afetando nações ao redor do globo. Esse cenário é resultado de fatores como a transição nutricional e epidemiológica, o aumento da prevalência da obesidade e a maior expectativa de vida de pacientes já diagnosticados com essa condição1. Dentre as complicações crônicas comumente observadas, esses indivíduos possuem um risco substancialmente maior de desenvolver úlceras nos pés, com amputações não traumáticas de membros inferiores. Em relação a isso, essas lesões contribuem em torno de 20% das internações entre pessoas com diabetes, e, dentre elas, mais da metade requer hospitalização devido a infecções, resultando em amputação em cerca de 20% desses casos2,3. Essas pessoas, ainda, apresentam cicatrização deficiente pela fisiopatologia da enfermidade, em função de lesões vasculares e vasculopatias, alterações nas células fagocitárias, favorecendo a instalação de infecções, e também da neuropatia, causando diminuição de estímulos inflamatórios por terminações nervosas. Desse modo, cerca de 70% das feridas de difícil cicatrização desenvolvidas não são resolvidas, mesmo com o uso correto de terapias tópicas4. Assim, várias tecnologias têm sido empregadas como recursos terapêuticos para essas lesões, e uma delas é a terapia larval (TL). Essa terapia consiste na aplicação de larvas vivas de mosca no tratamento de diversos tipos de feridas, dentre elas pode-se incluir as de difícil cicatrização e infectadas, sendo muito utilizada no tratamento de pessoas com diabetes pela sua eficiência no controle infeccioso e na redução do custo do tratamento5. OBJETIVO Descrever o uso da terapia larval no cuidado a uma pessoa com diabetes e portadora de ferida de difícil cicatrização. MÉTODO Trata-se de um estudo de caso vivenciado pela comissão de curativos de um hospital universitário do Rio Grande do Norte no cuidado a uma pessoa com diabetes e portadora de ferida de difícil cicatrização. Os dados presentes neste estudo foram colhidos a partir da análise documental retrospectiva dos atendimentos realizados de agosto a outubro de 2018, pela equipe composta por quatro enfermeiras assistenciais e três técnicas de enfermagem, que atuam diariamente no manejo de feridas complexas e são pioneiras no uso de TL em humanos no Brasil. A coleta de dados em prontuário foi realizada em julho de 2023. Ressalta-se que esta produção faz parte do macroprojeto de pesquisa “Perfil Sociodemográfico, clínico e assistencial de pacientes acompanhados pela comissão de curativos de um hospital universitário: estudo documental” e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do norte, com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 61761922.1.0000.5537 e sob parecer de nº 5.693.518. RESULTADOS Paciente JDA, 50 anos, agricultor, casado, portador de Diabetes Mellitus tipo 2 há cerca de quinze anos, hipertensão e doença renal crônica. Realizou transplante renal em março de 2017 na mesma instituição. Paciente foi internado em agosto de 2018, na unidade de clínica geral, para acompanhamento de lesão em calcâneo esquerdo que, segundo informações colhidas a partir do paciente, era decorrente de uma rachadura na área. Após internação, foi avaliado pela equipe especializada em tratamento de feridas complexas e de difícil cicatrização, mediante solicitação de parecer. No primeiro momento, encontrava-se consciente, orientado, comunicativo e colaborativo, eupneico em ar ambiente, com dieta por via oral com boa aceitação, eliminações espontâneas, sono preservado e restrito ao leito devido a causa da internação e sem apresentar demais variações no estado clínico geral mediante visitas posteriores. À época, estava sob uso de Piperacilina sódica + Tazobactam e Clindamicina. Durante visita, observou-se lesão recoberta por necrose em calcâneo esquerdo e odor fétido que não desaparecia após a limpeza. Apresentava hiperemia em área perilesional que se estendia até os maléolos, interno e externo. Pulsos pedioso e poplíteo palpáveis. Não houve palpação de pulso tibial posterior devido hiperemia e dor referida ao toque. Foram realizados e prescritos, no primeiro momento, os seguintes cuidados: limpeza da região perilesional com sabonete neutro e soro fisiológico 0,9% aquecido aquecido, aplicação de emulsão a base de andiroba em área perilesional e cobertura primária com gaze de algodão seca seguido de atadura de crepom, que deveria ser renovada diariamente e/ou sempre que necessário/sujo. Foram dadas orientações a equipe do setor quanto a higienização com sabonete líquido neutro, hidratação da pele três vezes ao dia e redistribuição da pressão em áreas de proeminências ósseas com auxílio de coxins, especialmente em calcâneos. Durante os 2 meses de internação, o paciente realizou três desbridamentos cirúrgicos e duas amputações no membro inferior esquerdo e recebeu 18 visitas da comissão de curativos. O paciente realizou o primeiro desbridamento cirúrgico, para remoção de tecido necrótico, dois dias após a primeira visita da equipe. No procedimento, foi relatado presença de odor fétido importante, se estendendo a 4cm de profundidade, e coleta de amostra de fragmento ósseo e partes moles para realização de cultura de fragmento, que apresentou resultado negativo. Mesmo após acompanhamento da comissão especializada no tratamento de feridas, foi necessário segundo desbridamento cirúrgico devido evolução do quadro. Após dois dias do segundo procedimento, observou-se leito cruento e pálido, tecido adiposo, presença de isquemia em margens, e área periférica sem hiperemia. Além de relato de dor de forte intensidade, mesmo com administração de tramal. Após limpeza, foi aposto como cobertura primária fina camada de hidrogel seguido de gaze de rayon úmida com soro (que deveria ser umedecida no horário da tarde com soro) e cobertura secundária com chumaço de gaze seca e atadura de crepom. Realizou angioplastia no membro inferior, porém, foi necessário a realização de novo (terceiro) desbridamento em centro cirúrgico dez dias após o segundo, seguindo aos cuidados da equipe após volta ao setor de internação. A lesão em questão evoluiu com exposição óssea, necrose liquefativa, pontos com necrose de coagulação e discreta granulação pálida entremeada por esfacelo. Apresentava, ainda, cavidade em região inferior, com tunelização de 8 cm, exsudação piossanguinolenta, margens regulares e bem delimitadas, com isquemia. Nesse sentido, foi acordado realização de amputação infrapatelar de membro inferior esquerdo em 18 de setembro do ano em questão. E, devido a evolução do quadro, realizou-se nova amputação em 04 de outubro de 3 cm de tíbia e da fíbula do coto, sendo realizada nova cultura de fragmento. Ao resultado, apresentou amostra positiva para Klebsiella Pneumoniae multirresistente. A ferida operatória evoluiu com necrose de margens e deiscência e foi avaliada pela comissão de curativos uma semana após procedimento cirúrgico. Ao atendimento, removeu-se a sutura, realizou-se desbridamento de parte do esfacelo e retirada de alguns coágulos. Foi aposto cobertura com gaze de rayon embebida em soro fisiológico e, a partir de diálogo com o paciente, foi decidido início de terapia larval após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A primeira aplicação da terapia larval foi realizada em 12/10, com aposição de cerca de 120 larvas de Chrysomya megacephala que permaneceram por 48 horas no local. A carga necrótica da lesão concentrava-se especialmente nas margens. O leito encontrava-se permeado por liquefação e discretos pontos de granulação pálida, sem palpação de osso. Ao cuidado, foi realizada limpeza de área perilesional com sabonete neutro e soro fisiológico 0,9%, limpeza do leito com jatos de soro morno e gaze de rayon embebida em soro fisiológico 0,9% recobrindo todo o leito e cavidades, sendo utilizado como cobertura secundária gaze seca e atadura de crepom. Foi recomendado para a equipe de enfermagem do setor a troca do curativo secundário sempre que úmido pela sensibilidade da larva ao excesso de exsudato, o controle da dor conforme prescrição médica e o contato imediato à equipe em casos severos de dor e desconforto. A segunda aplicação foi feita em 16/10, com aposição de 200 larvas, sendo essas removidas parcialmente em 17/10, durante capacitação de terapia larval, e totalmente em 18/10. A cobertura utilizada durante a segunda aplicação foi a mesma da primeira. Após retirada, a terapia tópica prescrita foi gaze de rayon com soro fisiológico. A ação digestória foi extremamente satisfatória com apenas duas aplicações, não sendo necessária a continuidade da terapia. Aos exames laboratoriais, apresentou também redução importante de marcadores de infecção, como da proteína C reativa (PCR), caindo de 102,37 para 18,47 do dia 15/10 ao dia 21/10. Desse modo, o paciente recebeu alta em 24/10, com coto de amputação com granulação exuberante e debris frouxamente aderidos, que foram removidos com instrumento de corte à beira leito. Assim, percebe-se que face a uma ferida de difícil cicatrização, a aplicação da TL revelou um resultado positivo, eficaz e superior aos cuidados anteriormente prestados pela sua rápida ação e controle infeccioso do processo. CONCLUSÃO A partir da descrição do caso, pode-se observar o papel positivo da terapia larval na cicatrização de feridas de difícil cicatrização em uma pessoa com diabetes. Apesar de sua utilização, essa terapia não é amplamente divulgada nem apoiada por órgãos responsáveis, apresentando, desse modo, dificuldades de implementação nos dias atuais. Assim, sugere-se estudos robustos sobre a eficácia dessa terapia no tratamento de lesões de difícil cicatrização.